09/02/2012

Tempestade de Almas


Ah, se eu sei, não nascia, ah, se eu sei, não nascia. A loucura é vizinha da
mais cruel sensatez. Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente. O
anel que tu me deste era de vidro e se quebrou e o amor não acabou, mas em
lugar de, o ódio dos que amam. A cadeira me é um objeto. Inútil enquanto a
olho. Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta
hora. A criatividade é desencadeada por um germe e eu não tenho hoje esse
germe mas tenho incipiente a loucura que em si mesma é criação válida. Nada
mais tenho a ver com a validez das coisas. Estou liberta ou perdida.
Vou-lhes contar um segredo: a vida é mortal. Nós mantemos esse segredo em
mutismo cada um diante de si mesmo porque convém, senão seria tornar cada
instante mortal. O objeto cadeira sempre me interessou. Olho esta que é
antiga, comprada num antiquário, e estilo império; não se poderia imaginar
maior simplicidade de linhas, contrastando com o assento de feltro vermelho.
Amo os objetos à medida que eles não me amam. Mas se não compreendo o que
escrevo a culpa não é minha. Tenho que falar pois falar salva. Mas não tenho
uma só palavra a dizer. As palavras já ditas me amordaçaram a boca. O que é
que uma pessoa diz à outra? Fora "como vai?" Se desse a loucura da
franqueza, que diriam as pessoas às outras? E o pior é o que se diria uma
pessoa a si mesma, mas seria a salvação, embora a franqueza seja determinada
no nível consciente e o terror da franqueza vem da parte que tem no
vastíssimo inconsciente que me liga ao mundo e à criador inconsciência do
mundo. Hoje é dia de muita estrela no céu, pelo menos assim promete esta
tarde triste que uma palavra humana salvaria.
Abro bem os olhos, e não adianta: apenas vejo. Mas o segredo, este não vejo
nem sinto. A eletrola está quebrada e não viver com música é trair a
condição humana que é cercada de música. Aliás, música é uma abstração do
pensamento, falo de Bach, de Vivaldi, de Haendel. Só posso escrever se
estiver livre, e livre de censura, senão sucumbo. Olho a cadeira estilo
império e dessa vez foi como se ela também me tivesse olhado e visto. O
futuro é meu enquanto eu viver. No futuro vai ter mais tempo de viver, e, de
cambulhada escrever. No futuro, se diz: se eu sei, eu não nascia. Marli de
Oliveira, eu não escrevo cartas pra você porque só sei ser íntima. Aliás eu
só sei em todas as circunstâncias ser íntima: por isso sou mais uma calada.
Tudo o que nunca se fez, far-se-á um dia? O futuro da tecnologia ameaça
destruir tudo o que é humano no homem, mas a tecnologia não atinge a
loucura; e nela então o humano do homem se refugia. Vejo as flores na jarra:
são flores do campo, nascidas sem se plantar, são lindas e amarelas. Mas
minha cozinheira disse: mas que flores feias. Só porque é difícil
compreender e amar o que é espontâneo e franciscano. Entender o difícil não
é vantagem, mas amar o que é fácil de se amar é uma grande subida na escala
humana. Quantas mentiras sou obrigada a dar. Mas comigo mesma é que eu
queria não ser obrigada a mentir. Senão, o que me resta? A verdade é o
resíduo final de todas as coisas, e no meu inconsciente está a verdade que é
a mesma do mundo. A Lua é, como diria Paul Éluard, éclatante de silence.
Hoje não sei se vamos ter Lua visível pois já se torna tarde e não a vejo no
céu. Uma vez eu olhei de noite para o céu circunscrevendo-o com a cabeça
deitada para trás, e fiquei tonta de tantas estrelas que se vêem no campo,
pois, o céu do campo é limpo. Não há lógica, se se for pensar um pouco, na
ilogicidade perfeitamente equilibrada da natureza. Da natureza humana
também. O que seria do mundo, do cosmos, se o homem não existisse. Se eu
pudesse escrever sempre assim como estou escrevendo agora eu estaria em
plena tempestade de cérebro que significa brainstorm. Quem terá inventado a
cadeira? Alguém com amor por si mesmo. Inventou então um maior conforto para
o seu corpo. Depois os séculos se seguiram e nunca mais ninguém prestou
realmente atenção a uma cadeira, pois usá-la é apenas automático. É preciso
ter coragem para fazer um brainstorm: nunca se sabe o que pode vir a nos
assustar. O monstro sagrado morreu: em seu lugar nasceu uma menina que era
sozinha. Bem sei que terei de parar, não por causa de falta de palavras, mas
porque essas coisas, e sobretudo as que eu só pensei e não escrevi, não se
usam publicar em jornais.
in "Onde estivestes de noite" - 7ª Ed. - Ed. Francisco Alves - Rio de
Janeiro - 1994
Clarice Lispector

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