De todos os nossos longos e curtos diálogos no
carro, no ônibus, em casa, nas praças, nas caminhadas pelo bairro.
Milhares de cumprimentos, de abraços, de risos,
de colos, de palavras de incentivo, de piadas e recordações, e o que guardo é
ela dizendo que não presto.
Uma única vez em que não prestei entre um
turbilhão de outras em que fui tratado como um príncipe.
Por que essa ingratidão memorativa? Por que
essa desigualdade evocativa?
De todas as conversas que travei com meu irmão,
só conservo a que nos separou.
A gente fez castelo juntos, jogou futebol,
armou casinhas, confabulou planos, inventou segredos; centenas de dias
ensolarados e noites de insônia partilhadas e agora desaparecidas entre o
hipocampo e o córtex frontal.
O que ficou de agradável: nada.
Estou por concluir que a memória abomina a
felicidade.
Não cuidamos dos positivos das lembranças,
apenas colecionamos os negativos.
Não nos esforçamos para guardar os bons
momentos porque temos a ideia – equivocada – de que são obrigatórios.
Há o entendimento de que normalidade é acumular
glória na vida enquanto a dor é um acidente de percurso. Há a convicção de que a
alegria é uma condição natural enquanto a cara fechada é uma exceção (não seria
o contrário?).
Predomina em nós a compreensão ingênua da
felicidade como facilidade e da tristeza como dificuldade. Ser feliz seria
simples e ser triste consistiria numa tremenda injustiça.
Uma noção do mundo em linha reta, de amor em
abundância, provocando o desperdício constante e perigoso.
Não preservamos as delicadezas, assim como não
economizamos água, já que ela verte com ligeireza pela torneira da
residência.
Não poupamos as cenas comoventes, assim como
não economizamos luz, já que ela depende de um clique para clarear as
paredes.
Não embrulhamos a ternura, esnobamos. Parece
que é um dever recebê-la, que nossa companhia precisa nos oferecer sempre o
cotidiano mais precioso. Devoramos um bolinho de chuva pensando no próximo.
Beijamos a boca de nossa mulher cobiçando o segundo, o terceiro e o quarto
beijo.
O que é ruim é solene. O que é bom é
descartável.
A morte se torna mais inesquecível do que o
nascimento. O atrito surge mais consolidado do que o primeiro encontro. A
ruptura se destaca diante dos acordes iniciais da amizade.
Temos amnésia da leveza, pois deduzimos que
virá mais e mais no dia seguinte. Não criamos álbuns de nossas gargalhadas, mas
recortamos as cenas rancorosas e amargas como se fossem definitivas e
esclarecedoras.
Somos algozes da felicidade e, ao mesmo tempo,
vítimas da infelicidade.
Porto Alegre (RS), Edição N° 17175
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